Colômbia: como esquerda reavivou esperanças
Favorito nas eleições de domingo, Gustavo Petro incorporou o espírito plural e insurgente dos protestos de 2019. Reconectou-se com a juventude – e as lutas no campo e na cidade. Oferece novo horizonte político de justiça social e busca da paz
Publicado 26/05/2022 às 19:12 - Atualizado 26/05/2022 às 19:55
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Por Javier Castro Cruz e Jaime Bordel Gil, em El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues
O Pacto Histórico, candidatura de esquerda liderada por Gustavo Petro e Francia Márquez, lidera todas as pesquisas e já começa com a vantagem de ter obtido excelentes resultados nas eleições legislativas de 13 de março. A esquerda nunca esteve tão perto de governar em um país muito conservador, no qual o sangrento conflito entre o Estado colombiano e a guerrilha travou as alternativas progressistas.
Hoje, porém, a sociedade colombiana mudou muito, e o programa da esquerda, centrado na redistribuição, na paz e no combate à corrupção, parece seduzir amplas camadas da população, especialmente os jovens. As acusações de guerrilheiros por parte da direita não têm mais o efeito de outrora e, paradoxalmente, a posição da esquerda em relação ao conflito armado tornou-se um de seus grandes trunfos diante da disputa eleitoral. A esquerda colombiana surgiu como a opção política mais seriamente comprometida com a paz, e seu compromisso com os Acordos de 2016 é o mais firme de todas as candidaturas apresentadas nas urnas neste domingo, 29 de maio.
Do outro lado do espectro político, a direita vive uma profunda crise que faz com que, pela primeira vez em anos, o uribismo não apresente candidato próprio nas eleições. A corrente política liderada pelo ex-presidente Álvaro Uribe, à qual pertence o atual presidente Iván Duque, teve um mandato que seria melhor esquecer [para a direita], marcado por agitação social e protestos contínuos contra seu governo. Seus erros no governo da nação, somados a condenação de Álvaro Uribe por suborno de testemunhas e fraude processual, deixaram este espaço político em uma posição mais delicada do que nunca.
Nesse contexto, a candidatura liderada por Petro conseguiu oferecer um horizonte de mudança mais alinhado com as aspirações de paz e as demandas de justiça social que a sociedade colombiana vem reivindicando nas ruas nos últimos tempos.
21 de novembro: uma explosão que mudou tudo
O dia 21 de novembro de 2019 foi um marco na história da mobilização social na Colômbia. O que inicialmente começou como uma greve nacional, convocada pelas centrais sindicais contra as medidas econômicas neoliberais do governo Duque, logo se tornou em símbolo do descontentamento contra o governo. Diferentes movimentos organizados da sociedade, como estudantes, feministas, comunidades afrodescendentes, indígenas e camponeses, tomaram ruas e protagonizaram um ciclo de marchas massivas que duraram três semanas – e acenderiam o estopim de uma explosão social que ressurgiu com muito força em 2021, após os parênteses impostos pela pandemia.
Sanda Borda, autora do livro Parar para avançar, descreve como o caráter histórico das marchas reside na natureza multitudinária, diversa e inusitada da mobilização, fruto da profunda transformação da cultura política e do protesto social na Colômbia, construída durante o processo da Paz. O próprio dinamismo da mobilização permitiu integrar demandas infinitas como o combate à precarização dos jovens, a aplicação integral dos Acordos de Paz de 2016, a denúncia da violência contra lideranças sociais, a luta das mulheres ou os direitos das comunidades indígenas. Todo um mosaico de reivindicações que contribuíram para ativar politicamente a juventude, que já esteve muito presente durante os acordos e nas mobilizações que antecederam a rebelião. Esse fenômeno teve sua tradução na arena política e, como aconteceu no Chile com Gabriel Boric, os jovens são a faixa etária que mais apoia o Pacto Histórico. Um fator que pode ser fundamental para obter um bom resultado já no primeiro turno.
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Uma das grandes virtudes do Pacto Histórico foi entender as mudanças que ocorreram na sociedade colombiana nos últimos anos, dando respostas a muitas das novas demandas que surgiram como resultado da insurgência social. De acordo com os últimos relatórios do Centro Latino-Americano de Estudos Geopolíticos (CELAG), a corrupção e a pobreza são os principais problemas do país para os colombianos, enquanto apenas 15% colocam o crime e o tráfico de drogas em primeiro lugar. Um contexto que claramente favorece uma esquerda excluída do poder há décadas e com um programa voltado para a redistribuição das riquezas e a redução das desigualdades sociais, em oposição a uma direita que foi muito desacreditada após o mandato de Iván Duque.
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A crise da direita
A reativação da greve nacional em abril de 202,1 após o anúncio da reforma tributária, acabou consolidando duas tendências: a capacidade da esquerda de ampliar sua base eleitoral e o descrédito da direita uribista. Por um lado, a esquerda foi capaz de ampliar seu espaço, agregando as demandas socioeconômicas surgidas da mobilização dos setores populares; e por outro, a direita afundava cada vez mais em uma crise de projetos e de liderança que ainda não conseguiu resolver.
Esta crise se expressa na candidatura de Federico “Fico” Gutiérrez, um candidato sem partido que, apesar de receber o apoio do partido de Álvaro Uribe, tentou ser visto o menos possível junto com o ex-mandatário. Nessa linha estão alguns gestos como a eleição de Rodrigo Lara, eleitor do Sim no plebiscito [para o processo de paz com a guerrilha], como fórmula vice-presidêncial. E, paradoxalmente, a adesão de setores próximos ao ex-presidente Uribe poderia colocar em risco um dos principais objetivos da candidatura de Gutiérrez: conquistar o centro político. Se a direita quer ter alguma opção para governar, isso passa seduzir o esse centro que, em 2018, temeu votar em Petro e optou por Iván Duque.
O problema é que esta é uma missão mais complicada do que nunca para uma candidatura apoiada pelo uribismo, que não só teve um mandato econômico desastroso, mas também colocou todos os obstáculos que pôde à implementação dos Acordos de Paz de 2016. Os Acordos são uma questão complexa e recorrente à direita, pois foram um dos principais pontos de ruptura entre a corrente mais moderada e próxima ao ex-presidente Santos, que os impôs em seu governo, e outra que os considerava uma capitação à guerrilha, liderada por Álvaro Uribe. Portanto, esta será, sem dúvida, uma das questões em que Fico Gutiérrez se distanciará de Uribe e de seu clã, como se viu há algumas semanas quando declarou que seu governo cumprirá os Acordos de Paz.
A reta final da campanha, espera Fico Gutiérrez, será marcada por certo equilibrismo com o Centro Democrático, partido de Álvaro Uribe. Tentar não entrar na foto sem chutar esses setores — os quais ele também precisa para vencer — não será tarefa fácil. Terá também pela frente uma esquerda mais unida do que nunca, que busca romper um ciclo histórico e iniciar uma etapa de mudança no país.
Um pacto histórico
A construção de uma candidatura unitária não foi uma tarefa fácil para a esquerda colombiana. O Pacto Histórico nasceu de uma heterogeneidade imperfeita, como indica Luciana Cadahia, incluindo diferentes partidos e movimentos com o objetivo de assumir as aspirações de mudança na Colômbia. Longe de constituir um programa revolucionário, a coalizão liderada por Petro busca articular um bloco social capaz de consolidar a democracia e a paz no país. A reforma do modelo previdenciário, a promoção das reformas agrária e tributária, a melhoria da educação pública, o retorno ao sistema público de saúde ou o afastamento da indústria extrativa são alguns dos desafios em termos de igualdade e justiça social que enfrentará um possível governo progressista.
O desenvolvimento de lideranças sociais e étnicas, forjadas durante os acordos de paz nos territórios, foi outra das chaves para o sucesso do Pacto Histórico. O protagonismo concedido a essas figuras permitiu que a coalizão pudesse articular inúmeros setores e deixar de estar continuamente associada à guerrilha. Talvez o exemplo mais evidente seja o de Francia Márquez. A candidata a vice-presidente de Gustavo Petro tornou-se um verdadeiro fenômeno político após seu incrível resultado nas consultas interpartidárias. Embora sua liderança social e política tenha sido fortalecida na luta pelos direitos ambientais de sua comunidade sobre o território e na oposição às remoções forçadas, sua candidatura também conseguiu dar representatividade à luta dos movimentos feministas e antirracistas colombianos.
Esta heterogeneidade é hoje o grande trunfo que o Pacto Histórico possui. Poder representar uma série de lutas que vão desde a esquerda clássica até os movimentos feministas, antirracistas e ambientalistas. O Pacto Histórico aspira ser a voz das mil sensibilidades que anseiam por uma mudança pacífica na Colômbia.
“….Dos quais ele também precisa para vencer”.